Por anos a sociedade brasileira – e também internacional - cultivou e semeou a ideia de uma nação caracterizada pela tolerância racial e pelo convívio harmonioso entre as diferentes origens étnicas. Tal pensamento foi propagado pelo discurso científico da Democracia Racial, de Gilberto Freyre, publicado na célebre obra “Casa-Grande & Senzala”, lançada na década de 30.
"Glamorizada", além da sua real contribuição, a tese serviu para a manutenção de um sistema velado de racismo com origem na colonização e ao comodismo e desencorajamento de qualquer movimento de resistência à realidade. Resultado disso, por exemplo, é a tardia criminalização do racismo somente em 1989 (Lei n˚ 7.716) – bem recente do ponto de vista de nossa trajetória histórica.
O jornalista Willian Waack atuava como âncora do Jornal da Globo |
Apesar da contundente desconstrução desse pensamento - de que há uma perspectiva de tolerância racial - pelo sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995) ao elaborar a teoria do Mito da Democracia Racial na década de 60, a falsa perspectiva permanece encrustada no imaginários social de boa parcela de nossa sociedade. Exemplo disso é o recorrente argumento da meritocracia quando à discussão é cota racial para acesso às universidades. Mas esse será tema para post futuro.
O episódio Waack é simbólico, embora recorrente. O mundo virtual tem escancarado a efetividade da teoria de Florestan Fernandes com noticiários sobre racismo – ou mesmo por injúria racial – envolvendo famosos ou não famosos. Haja vista o ataque sofrido pela inocente Titi, filha adotiva do ator Bruno Gagliasso e da atriz Giovanna Ewbank. Ou o espancamento do ator negro Diogo Cintra, no Terminal Parque Dom Pedro 2˚, em São Paulo.
Símbolo da intelectualidade orgânica
A exposição do caso Waack desmascara um símbolo da intelectualidade orgânica a serviço do pensamento liberal. Por conta disso é relevante a discussão em torno da sua simbologia, uma vez que o mesmo consolidou-se como expressão de uma ideologia defendida explicitamente, abandonando a tese da neutralidade na apresentação do noticiário. Foi dessa forma que implantou o seu estilo à frente do Jornal da Globo.
Não se trata de uma relação causal, mas o paralelo entre a intolerância racial e o ideário econômico de classe repousam na origem escravocrata da sociedade brasileira. Nesse segundo, pelo menos, é o que sustenta o sociólogo Jessé Souza em seu novo livro “A Elites do Atraso – Da Escravidão à Lava Jato”, publicado em 2017.
Os problemas enfrentados pelo país não estão na herança portuguesa de um Estado Patrimonialista – discurso dominante até hoje -, mas na origem escravocrata. Para isso, o autor tenta reinterpretar a história do Brasil a partir do zero, como definiu em entrevista à Revista Cult.
Dessa forma, Waack não é um simples caso a mais no histórico deprimente do pensamento racista, mas representante conceitual de uma classe social dominante. Haja vista o papel social atribuído como expressão da intelectualidade orgânica na grande mídia. Por esse conceito entenda a perspectiva teórica do italiano Antonio Gramsci (1891-1937) em relação a hegemonia burguesa.
Outros casos
Waack não foi o primeiro, mas certamente não será o último intelectual orgânico a ter suas “vísceras ideológicas” expostas. Basta lembrar outro respeitado nome da intelectualidade orgânica liberal e não menos agressivos nas suas convicções em detrimento da neutralidade jornalística. Sobre esse aspecto, recomendo a leitura de meu último post.
Me refiro ao jornalista Boris Casoy que, assim como Waack, foi pego, bem à vontade, expressando a sua real visão de mundo, de origem classista e, a partir da leitura de Jessé Souza, de origem elitista e escravocrata. Casoy, na época, desabonou a importância dos garis numa condição hierárquica desprezível, segundo o seu pensamento.
Tal fato lhe rendeu uma condenação judicial para o pagamento de indenização ao gari ofendido. Mas, muito mais evidente, é a exposição de um símbolo da intelectualidade orgânica com a sua real visão de mundo, de origem escravocrata. Waack e Casoy expressam um jeito de perceber o mundo – seja na organização social ou econômica – e, de alguma maneira, validam a tese de Jessé Souza.
Esse artigo foi publicado originalmente no portal de notícias Alfenas Hoje
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