terça-feira, 3 de janeiro de 2017

A soberania no ralo

Uma fala, exibida em rede nacional no final de novembro, é a síntese de um pensamento e uma prática que, historicamente, se apodera de nossa política. E, que encastelada nos últimos anos, resolveu apresentar-se de maneira explícita, sem o prudente receio de “rasgar” a nossa Constituição Federal.

Vamos ao fato: no dia 21 de novembro de 2016, a edição do Jornal Nacional (TV Globo) trouxe uma reportagem sobre a reunião do presidente Michel Temer (PMDB) com os integrantes do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – o chamado “Conselhão”.




A reportagem fecha, como uma espécie de “coroa de flores” sintetizadora da mensagem que se propõe valorizar, com o “conselho” de Nizan Guanaes, empresário do setor de comunicação. Não é por acaso que são reservados 45 segundos a fala do empresário, a qual reproduzo, na íntegra, a seguir:

“Já que o governo ainda não tem índices de popularidade altos, aproveite, presidente. A popularidade é uma jaula. Ninguém faz coisas contundentes com altos níveis de popularidade. Então, aproveite que o senhor ainda não tem altos índices de popularidade e faça coisas impopulares que serão necessárias e que vão desenhar este governo para os próximos anos. Aproveite sua impopularidade. Tome medidas amargas. Aliás, este é o grande desafio das democracias do mundo. Como fazer coisas impopulares?” Confira aqui

Ora, ao desafiar a opinião popular e propor que o poder político seja utilizado como um "trator", o representante das forças econômicas demonstra o mais puro pensamento aristocrático. Expõe o que costuma-se camuflar: o desprezo pela massa e a sua condição de agente ativo no processo democrático. As vozes das ruas devem, agora, ser ignoradas.

O discurso revela inversão de valores à medida que popularidade torna-se “jaula” (nas palavras de Guanaes), elemento restritivo das ações que atendem aos interesses da elite econômica. Nada mais reacionário do que defender a impopularidade como virtude para que se enfrente o desejo da massa – fazendo valer a força se necessário.

A “demonização” de governos populares na América Latina – facilmente tachados como populistas – tornou-se recorrente em parte significativa da mídia hegemônica, reprodutora do pensamento liberal e aristocrático. Se recorrermos a nossa história encontraremos a figura de Getúlio Vargas como ápice desse enfrentamento.

Nem mesmo teorias reducionistas quanto a participação popular são capazes de abrigar, sem margens às contestações, a legitimidade do poder político do atual governo. O sociólogo alemão Joseph Schumpeter, por exemplo, rompeu com a ideia de democracia como soberania popular, reduzindo a participação das massas na política ao ato de produção de governos (resumindo-se ao voto).

É preciso enfatizar os questionamentos quanto a legitimidade do atual governo por parte significativa da sociedade – não somente as correntes ideológicas, mas sobretudo o acolhimento dessa tese por figuras que são ícones no meio jurídico. O ex-ministro Joaquim Barbosa, do STF (Supremo Tribunal Federal), é um dos críticos dessa legitimidade. (Clique aqui e leia)

Não se pretende aqui fechar essa discussão em particular com um raciocínio raso, mas demonstrar que a impopularidade, associada a ausência de um consenso jurídico em meio a "trovoadas" de incertezas, seriam elementos mais que satisfatórios para que o zelo pela democracia prevalecesse e fosse condição indispensável para que a força econômica não atropelasse a soberania popular.

Para além do pensamento do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, para qual a democracia só se efetiva com a participação direta dos cidadãos, a nossa Constituição Federal resguarda, em seu artigo 1˚ (parágrafo único), que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Ou seja, a soberania popular não pode ser apenas instrumento de retórica e extirpada a partir de interesses econômicos classistas e aristocráticos. Em uma democracia, não cabe sobreposição do poder econômico sobre a vontade popular como forma de impor uma verdade que não é absoluta. Se a prática aristocrática sobrepor a soberania popular estaremos, por consequência, rasgando a nossa Constituição.


Este artigo foi publicado no portal de notícias Alfenas Hoje. Confira aqui!

domingo, 1 de janeiro de 2017

Não somos máquinas!

A cobertura jornalística da tragédia aérea ocorrida em Medellín, na Colômbia, no último dia 28/11, trouxe aspectos incomuns, mas enriquecedores – tanto pessoais quanto para análise do ofício. Foram mais de 70 mortos, incluindo a delegação da Chapecoense, tripulantes e vários profissionais da imprensa.
A veiculação jornalística relativa às mortes no Brasil, das mais diversas origens, tem sido recorrente dentro de uma abordagem, muitas vezes, numérica e distanciada da “humanização”. Acostumados a um produto frio – repleto de dados –, os leitores e/ou telespectadores carecem do retorno do jornalismo humanizado, pelo qual as histórias dos personagens enriquecem a notícia e fornecem elementos, além dos dados frios, para uma melhor percepção e interpretação do fato. Isso foi possível no caso em questão, diferente da prática comum no jornalismo contemporâneo.

Só para se ter uma ideia da dimensão dessa triste realidade, em que jornalistas são submetidos por ofício a um contato cotidiano, vejamos os dados estatísticos apresentados pela ONU (Organização das Nações Unidas) em Genebra, na Suíça, em maio deste ano. A taxa de mortes oriundas de acidentes de trânsito no Brasil é de 23,4 para cada 100 mil habitantes. Isso coloca o Brasil na quarta colocação na América, atrás somente de Belize, República Dominicana e Venezuela.
Não obstante, as mortes causadas por homicídios também representam uma parcela significativa do noticiário e, por consequência, ocupam boa parte da rotina profissional dos jornalistas brasileiros. Segundo dados do Atlas da Violência 2016, divulgado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a taxa de homicídios no Brasil chegou a 29,1 mortes por 100 mil habitantes. Pelo menos 59.627 pessoas sofreram homicídio no Brasil em 2014.
Nenhuma morte se sobrepõe a qualquer outra em termos de valor, mas guarda, evidentemente, elementos classificatórios na escala técnica de seleção e priorização da notícia. A simples categorização enquanto acidente aéreo já seria um desses elementos que garante a priorização enquanto fato noticioso.
Entre choros e lágrimas
A cobertura jornalística, sobretudo televisiva, mostrou a dificuldade de vários profissionais em executar a sua missão. O experiente repórter Ari Peixoto não conteve a emoção e chorou durante um link ao vivo no jornal Hoje (TV Globo), exibido no dia 1˚ de dezembro. Dois dias depois, durante a transmissão do funeral na Arena Condá, o repórter esportivo Eric Faria, da TV Globo, também não conteve a emoção.
Outra cena que chamou a atenção foi o abraço dado por dona Ilaídes, que perdeu o filho (o goleiro Danilo) no desastre, no repórter Guido Nunes, do SporTV, durante uma entrevista ao vivo. Outros exemplos seguiram no decorrer da semana, envolvendo Galvão Bueno e Fernanda Gentil, que – mesmos no estúdios – se viram “traídos” pela emoção.
Recorri a todo esse histórico para refletir sobre alguns conceitos que percorrem a atividade jornalística. Entre os quais, a imparcialidade. O sociólogo alemão Max Weber, ao teorizar sobre a prática científica, abordou a questão da neutralidade. Óbvio que não se trata de uma abordagem direta da atividade jornalística, mas produz ensinamentos que nos conduzem para a reflexão da prática em si.
A objetividade como mito
Recorrendo ao historiador Lucien Febvre (1989), e parafraseando-o, é possível lançar a indagação: a cidade da objetividade pode, realmente, vigiar e expulsar, de vez, o cavalo de Tróia da subjetividade? Ou seja, em que medida a nossa construção, enquanto indivíduo, não molda nossos olhares e torna limitada a nossa capacidade plena de isenção diante dos fatos?
A proximidade com as vítimas, seja por laços pessoais ou profissionais, levou, no caso da cobertura do acidente aéreo envolvendo colegas da imprensa, os jornalistas, em alguns momentos, a abandonarem – não no sentido voluntário – a postura impessoal e de isenção. Afinal, não somos máquinas programadas para cumprir o ofício sem qualquer interferência de nossa história de vida, descolados das relações sociais.
A adoção de conceitos como o da objetividade, da neutralidade e da impessoalidade, por meio de técnicas que auxiliam nesse exercício profissional, fazem-se necessários na busca pelo bom jornalismo. Entretanto, não se devem desprezar os elementos da subjetividade da qual somos reféns. Reconhecer a sua existência, negando a ideia de um indivíduo robotizado, é o primeiro passo na busca pela imparcialidade, ainda que esta seja um mito em sua plenitude.
Em termos práticos, o mesmo ensinamento weberiano para a pesquisa científica, separando de forma rigorosa o juízo de fato (o que é) e o juízo de valor (o que deve ser), também vale para o exercício jornalístico. É a partir do reconhecimento dessa tensão que se pode construir um produto final carregado de honestidade em sua produção.
A emoção e o aspecto valorativo na cobertura aqui analisada não invalidaram o trabalho da imprensa televisiva. Pelo contrário, mostrou-se eficiente pela naturalidade, seriedade e honestidade com as quais foi produzida. Afinal, não somos máquinas!
Este artigo foi publicado pelo Observatório da Imprensa. Clique aqui e confira!